Subimos uma colina escarpada que me custou suor; ali o animal lávico orientou-me: deveria esperar o Sol faiscar antes de iniciar minha jornada que partiria de uma estreita trilha riscada no seio da floresta. A luminosidade escarlate que fluía do interior do animal adentrava o trajeto ondulado da trilha: era sangue escorrendo na veia. A floresta existia e pela primeira vez enxergava sem brumas seu latejar, sentia sem anteparos a ardência do seu pulso.
Acordei ao primeiro e ainda preguiçoso raio solar; havia adormecido recostado no tronco de uma árvore. Do animal lávico só restava um mortiço cheiro de enxofre. Desci a encosta e me dirigi à trilha indicada, não sem antes deliciar-me com a doçura das jabuticabas e com o tempero indefinido das pitangas.
Enquanto enchia o bolso com pitangas alaranjadas (as que mais alegram meu paladar, incorrigivelmente inclinado à acidez) encontrei ao pé da pitangueira um moleque índio cujos olhos foram arrancados. No dia em que nascera, contou-me, Tupã fendeu o céu em trovoadas e a chuva desabou por três dias seguidos. Ao cabo deles, o paraíso: jamais a floresta fora tão melódica, jamais os pássaros cantaram tão azul, jamais os rios correram tão doces.
Amanara, o moleque, era uma dádiva divina, Energia Vital em forma de carne, festejada em danças ébrias e amores prolongados. Tão deslavada felicidade merecia um corretivo exemplar; foi assim que Amanara adquiriu a peçonha da Serpente Marrom, enquanto se fartava de goiabas brancas. Morreu ao pé da goiabeira, os olhos castanhos abertos e nos lábios um sorriso fino qual uma lâmina cortante. Entre espaçados soluços a mãe pediu que arrancassem os olhos do menino, que os plantassem em solo bom. Não demorou e veio ao mundo a pitangueira.
Segui meu curso enlevado por tão densa história, imerso, irreversivelmente naufragado na textura onírica da selva – na fusão, na confusão de sonho e realidade. Neste estado de espírito cheguei à trilha.
[Continua]
Fragmentos anteriores
1. Bold as Love
2. Um convite lávico
* * * *
2 comentários:
só pra variar... ler-te me encanta.
Uau! Recheado de mitologia!
Fiquei ansiosa para saber mais...
(ADOREI a origem da pitangueira.)
Beijos!
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