quinta-feira, fevereiro 28, 2008

A Bifurcação do Limiar

A trilha era ladeada por um verde indevassável e acarpetada por uma areia negra que sorvia meus pés, o que tornava custosa a caminhada. Dez minutos, vinte metros. Divisei o Ancião ao vencer a primeira curva acentuada. Embora envergado pelo tempo, marchava em minha direção com admirável desembaraço – era um terreno em que o peso da idade transmutava-se estranhamente no membro capital das aves.

Entranhado nos grãos noturnos e movediços contemplei aquele espetáculo gratuito: a garça-real com sua túnica acinzentada, pairando soberba sobre as amarras fatigantes da existência.

“Levá-lo-ei à Bifurcação do Limiar”, prometeu-me os lábios rubros do Ancião; apoiado em seu corpo decrépito granjeei a graça de uma força descomunal. Percebi que provido daquele apoio débil era possível caminhar por quilômetros sobre as areias movediças que outrora me engolfavam.

Caminhamos, o silêncio sendo nosso diálogo. Pica-paus de plumagem marrom rondavam as árvores. Sentia-me fixado aos alicerces do mundo.

O Ancião partiu pelo único caminho aberto depois de me deixar em um ponto onde anunciou ser a Bifurcação do Limiar. Nenhuma bifurcação visível, apenas um único caminho, o caminho largo e sólido por onde partiu o Ancião.

Alicerces entulhados. O caminho alternativo carecia do concreto robusto da divindade onipotente. A vaga e virgem vereda: densa floresta.

[Continua]

Fragmentos anteriores
1. Bold as Love
2. Um convite lávico
3. A trilha

* * * *

6 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Camarada,

Já proponho que você junte todos estes fragmentos e os unifique em torno da idéia de um livro. Afinal, isso é uma preciosidade, de uma escrita límpida e criativa. Feita, ao que se parece, debaixo de muito suor. É assim que se produz literatura. Não para ser literatura. Mas para tirar para fora algo que nos incomoda lá nos recônditos da alma.

O Grande Guimarães Sertões Veredas :) começou a escrever aquilo a que hoje reconhecemos como clássico da literatura de Pindorama em um momento de êxtase, onde ele não conseguia parar de tirar a virgindade da folha com a pena. Isso é arte! Isso é vida!

Continue a fazer o mesmo que o grão-mestre conterrâneo de terra e de prosa. Não existe melhor tributo que esse.

Por favor, de tudo que tiver de fazer de importante, nunca deixe de escrever. Escreva, por causa de dois princípios pertubadores, brevitate vitae e carpe diem.

Com profunda admiração.

Bárbara disse...

Senti a enorme dificuldade de caminhar... Engraçado, a cada fragmento aumenta mais a minha curiosidade de ler o próximo. Gostei muito de ouvir 'Grace' aqui.

Beijos!

Alice disse...

Caminhemos então...

bjusssss

abstrato de tomate disse...

cara, teve um post teu falando sobre desobediência.

vc já viu esse filme?:


http://fitak7.blogspot.com/2008/01/da-bondade-de-estranhos.html#links

Alysson Amorim disse...

Não vi o filme, Abstrato, mas parece interessante.

abstrato de tomate disse...

muito bom, vale a pena.