quarta-feira, outubro 10, 2007

O Imutável

As expressões Mysterium tremendum e Mysterium fascinans ficaram consagradas no estudo de Rudolf Otto sobre o numinoso. O Mistério provocaria, a um só tempo, o temor que terrifica e afasta (tremendum) e a fascinação que enleva e atrai (fascinans). O teólogo espanhol Andres Torres Queiruga, advogando a face integralmente amorosa de Deus, afirma que a revelação exemplar de Deus em Cristo aponta para uma superação do aspecto terrificante, tremendum, do Inefável.

Queiruga propõe que as imagens ou representações de Deus como um ser terrificante, comuns em passagens do Antigo Testamento, foram superadas pela imagem de Deus apresentada por Jesus de Nazaré. O Mistério é imutável e eterno - conforme cremos, o que muda em função do tempo e do espaço são as imagens que usamos para se referir a Ele - o que é possível verificar.

Naturalmente, a imagem de Deus como ser isento de ira e integralmente tomado pelo amor é apenas mais uma imagem do Inefável, mais uma representação, embora a mais coerente com a mensagem evangélica e com a sensibilidade do nosso tempo. Portanto, ao nos referirmos, como frequentemente acontece, a um outro Deus possível, estamos nos referindo a uma outra representação de Deus possível.

Joseph Campbell afirma que Deus (ou mais precisamente a representação de Deus) é um meio conveniente para despertar a adormecida alma humana, ou usando uma linguagem comum aos contos clássicos, Deus é o príncipe que desperta a princesa com seu beijo mágico. Campbell quer dizer com isso que esta ou aquela imagem de Deus "representadas em termos trinitários, dualistas ou unitários, politeístas, monoteístas ou henoteístas, de forma pictorial ou verbal, como fato documentado ou visão apocalíptica - é algo que ninguém deve tentar ler ou interpretar com forma última." Sobre o Inefável, o Ponto Essencial a que se referem os símbolos e as representações de Deus, sabemos quase nada ou nada, embora a teologia insista em dissecá-lo como se disseca um rato em um laboratório de Biologia.

Carl Gustav Jung, comentando sobre as mutações nas representações de Deus ao longo da história, afirma:

O termo Deus, por exemplo, expressa uma imagem ou um conceito verbal que sofreu mudanças ao longo de sua história. Em tal caso não temos possibilidade alguma de demostrar, com a mínima parcela de certeza que seja - a não ser a da fé - se tais mudanças se referem apenas às imagens e aos conceitos, ou se atingem o próprio inefável (...) Mas a única certeza de que dispõe nossa inteligência é a de que trabalha com imagens, representações que dependem da fantasia humana e de seus condicionamentos tanto em relação ao espaço como em relação ao tempo; por isso mesmo, sofreram muitas modificações ao longo de sua história secular. (JUNG, Carl G. Resposta a Jó)

Muito embora, como lembra Jung, as imagens e representações de Deus sofram modificações na história, por outro lado, o mesmo Jung vai demonstrar que as semelhanças entre as diversas mitologias e religiões da humanidade não são meras coincidências. As diferenças, na verdade, são bem menores do que "popularmente (e politicamente) se supõe". Ainda comentando sobre as imagens e representações de Deus:
Não há dúvida de que na origem destas imagens se acha algo que transcende a consciência e não somente impede que os enunciados variem simplesmente, de maneira ilimitada e caótica, como também mostrando que eles estão relacionados com uns poucos princípios ou arquétipos. (JUNG, Carl G. Resposta a Jó)
"Porque eis que o Reino de Deus está dentro de vós", ensina o Mestre de Nazaré. Os símbolos, repita-se, são apenas meios convenientes que permitem a salvação da nossa alma do sono profundo em que está mergulhada:
Com efeito, o sentido de que se reveste a imagem bíblica da Queda é precisamente a passagem da supraconsciência para o estado de consciência. A constrição da consciência, à qual devemos o fato de não vermos a fonte da força universal, mas, tão somente, as formas fenômenicas que ela reflete, transforma a supraconsciência em inconsciência e, no mesmo instante, precisamente ao fazê-lo, cria o mundo. A redenção consiste em retornar a supraconsciência e, por intermédio desse retorno, na dissolução do mundo. (CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces)
No nosso relacionamento com o Sagrado resta-nos apenas os símbolos que em sua universalidade apontam para uma Verdade única e imutável, embora manifestada em múltiplas e variáveis formas: "A Verdade é uma só; os sábios se referem a ela por muitos nomes", como nos ensina a sabedoria dos Vedas.
* * * *

3 comentários:

Anônimo disse...

Meu filho, com toda permissão devida, essa "água" que estas bebendo é contagiante. É antídoto puro contra religião. Li em algum lugar a frase. "mais cristianismo e menos religião". Esses caras que estás lendo clareia a vista.
Tenho um cafezinho quente pra você, passe lá em casa. Um abraço

Felipe Fanuel disse...

Alysson,

Digna de nota é a sua audácia em dialogar com diferentes autores, de diferentes ciências sobre um mesmo assunto, tão complexo, como os símbolos relacionados ao fenômeno religioso. Parabéns!

Que seja dito, no entanto, que cada autor tem sua própria hermenêutica, fruto de suas decisões existenciais. Você, inclusive, tem a sua, consciente ou inconscientemente, como todos nós temos.

Um forte abraço.

Alysson Amorim disse...

Caro Francisco,

Estes caras são mesmo inebriantes.

Abs.

Felipe,

Sem o mínimo rigor metodológico, não é mesmo?! São apenas divagações que precisam ser perdoadas. =)

Um forte abraço.