quinta-feira, julho 12, 2007

Sobre a gênese do inferno

O corpo trepidante sentia o fluido emanando, afogando os olhos e embebendo a face. Horror onírico. Levei as mãos ao abdômen, suor e não sangue. Não ainda. Mal cerrava os olhos sentia outra vez o cravar do metal que tocava com frieza meus órgãos vitais.

Suor e não sangue. Suor, o sangue amanhã, maculando o metal. Aquele metal químico, físico, não este tricotado pelas obtusas mãos do inconsciente. O sangue e depois a morte. Tanto melhor. Tanto melhor.

A guilhotina que se demora. Um defeito qualquer, os técnicos estão apertando um parafuso. O carrasco foi defecar na latrina. Suor, líquido lúgubre. Que venha o víscido rubro, uns respingos e então, talvez, a liberdade.

Depois da noite de tormentos o sol faiscou no horizonte, chocando-se violentamente contra a lâmina polida. Os técnicos guardavam suas ferramentas, o carrasco regressava em um caminhar aliviado. Logo a lâmina desfecharia seu golpe moderno: asseado e ligeiro.

Escovava os dentes enquanto os últimos devaneios oníricos juntavam seus despojos e partiam. Talvez não houvesse guilhotina. Pobre homem: nada há que possa incinerar seus pecados. Dormirei e serei novamente violentado pela guilhotina da culpa. Suor e suor apenas. Sangue é devaneio.

***

Ránia recebeu-me com um abraço. O mais absurdo deles: aquele que nos envolve sem aviso prévio, sem motivo prévio. O abraço do apunhalado, o sangue ainda borbulhando em seu peito estilhaçado por nossa espada cruel.

Ela trazia uma chaga enorme no peito, chaga aberta pela foice que outrora empunhei. As palpitações imprecisas da carne que expulsa para o corpo o líquido vital podiam não apenas ser sentidas por minha epiderme trêmula, como também apreendidas por minhas retinas alarmadas.

Nada de guilhotinas. Apenas aquele abraço etéreo de Ránia, a respiração temível e deslumbrante de um deus.

Não fui forte o suficiente, não há homem que o seja. Ao tocar o tecido que compõe o mistério absurdo do sagrado o mínimo indício de sanidade se esvai e passamos a forjar guilhotinas e condições mil para um indulto desnecessário.

* * * *

6 comentários:

Natália Nunes disse...

É de sua autoria, Alysson?

Prosa poética, cheia de martírio.
Ah, e de culpas, eu tb compreendo...

Muito bom.
;)

Anônimo disse...

Gostei, mesmo. Quanto a forma, impecável. A questão dos pecados e ressentimentos me preocuparam, um pouco, caso sejam parte de alguma confissão. Pelo sim, pelo não, já antecipo tua absolvição. Vá e não peques mais.

Alysson Amorim disse...

De minha autoria, Natália. Ainda não havia mostrado esta minha face aqui, né?! É que não tenho força suficiente para parir idéias como estas todos os dias, como aliás, você faz muito bem lá em seu blog.

Agradeço as palavras, Lou. Suas palavras são as mesmas da Ránia do texto: de um perdão incompreensível. Ma se tranquilize, não se trata de uma confissão minha. Não consciente, pelo menos.

Cleinton disse...

obrigado pela visita, cara...
um grande abraço...
liberdade, beleza e Graça...

Janete Cardoso disse...

Seu texto me emocionou...
beijo

Anônimo disse...

Camarada alysson, bom dia! seu texto é inspirativo. Nos leva a pensar longe, capta pensamentos "meta história". Como se o registro dos fatos fossem insuficientes. Neste caso, não importa se as luzes que atraem são de derrotas ou sucessos, de fracassos ou conquistas, se é de terror ou contentamento. (Levante a mão, aquele que não quer saber o que aconteceu!) Porque o exame, em si mesmo, evidencia esses anseios. Tenho impressão que todos nós, uns mais outros menos, passamos por esses momentos.