sexta-feira, janeiro 11, 2008

Os charlatões da América

O norte-americano Mark Twain sabia provocar em seus leitores uma espécie de riso nervoso, aquele riso canalha que rompe quase instintivamente do humor negro. Descreveu travessamente em seu divertidíssimo As Aventuras de Huckleberry Finn os curiosos traços da sociedade estadunidense daquele século XIX. Sem usar o dedo em riste, Twain questiona as diferenças raciais e a utilização de mão de obra escrava na banda sul dos Estados Unidos, sempre a partir da voz ingênua (e por isso mesmo soberbamente ácida) do pequeno aventureiro épico Huck Finn.

O velho Twain nunca deixou de incomodar com seu humor; como um bom conhecedor (e vítima) do ambiente religioso do sul dos Estados Unidos, dizia que preferia "o paraíso pelo clima e o inferno pela companhia." Espetou a imprensa sensacionalista após seu obituário prematuro publicado no New York Journal, informando aos leitores do periódico que os relatos sobre sua morte eram "desmedidamente exagerados".

Charlatões não são, nem de longe, uma exclusividade tupiniquim. As Aventuras de Huck Finn narra um episódio de charlatanice em uma comunidade religiosa dos Estados Unidos que provoca aquele riso nervoso - e aquela comparação forçosa. O charlatão em questão aparece para Huck como "o légítimo e sofredor rei da França, de casaca azul e na miséria." Usa a barca do jovem aventureiro Huck para aportar em cidades e tirar dinheiro das pessoas. Assim narra Huck:

De repente vi que o rei avançava; a voz dele ouvia-se acima da de todos os outros; abriu o caminho até o estrado, ao qual subiu, pediu ao pregador que o deixasse falar ao povo, e fê-lo. Disse-lhes que era um pirata - que fora pirata durante trinta anos no oceano Índico e que sua tripulação ficara muito reduzida, na última primavera, em uma refrega, e que voltara à pátria para recrutar novos homens, e graças a Deus fora roubado na noite anterior, e desembacara de um vapor sem um centil no bolso, e sentia-se contente com isso, fora a melhor coisa que já lhe acontecera, porque era um homem diferente agora, e sentia-se feliz pela primeira vez na vida; e pobre, como estava, ia partir de novo para o oceano Índico e dedicar o resto de sua vida a tentar trazer os piratas ao caminho da verdade; porque podia fazê-lo melhor do que ninguém (...) e embora levando muito tempo para chegar lá sem dinheiro, havia de chegar, de qualquer maneira, e de cada vez que convertesse um pirata havia de dizer-lhe "Não o agradeças a mim, não me cabe nenhum mérito, pertence todo àquela boa gente de Pokeville, irmãos naturais e benfeitores da raça - e aquele caro pregador, o melhor amigo que um pirata já teve. Desatou a chorar e com ele todos os presentes. Então alguém gritou: "Façamos uma coleta para ele! Façamos uma coleta!" (...) E assim o rei foi andando de um em um, no meio da multidão, enxugando os olhos e abençoando o povo, enaltecendo-os e agradecendo-lhes por serem tão bons com pobres piratas; e não tardou que uma encantadora moça, com lágrimas escorrendo pelas faces, lhe perguntasse se permitia que ela o beijasse, para conservar sempre a lembrança dele; depois outras e a todas ele satisfazia (...) Quando voltamos a jangada e fomos apurar, verificamos que ele apurara oitenta e sete dólares e setenta e cinco cêntimos (...) o rei depois disse que tudo bem considerado, desistia da idéia de ser missionário, que não adiantava pregar, que os pagãos de nada se importavam; nem os piratas."

* * * *

Um comentário:

Felipe Fanuel disse...

Na religião é assim: o fio que separa o charlatanismo da boa intenção é demasiadamente tênue, quase não dá para identificar. (Lembrei do filme Fé demais não cheira bem.)

As pessoas precisam de algo que as toque de maneira incondicional. O charlatão opera nesse mundo dos desejos. Ele oferece o impossível com o possível. É um líder carismático. Enquanto durar seu carisma, o bolso estará cheio.