quinta-feira, janeiro 24, 2008

O Evangelho decomposto

“Já se terá adivinhado o que se sucede com tudo isto e sob o véu de tudo isto: esta tendência a se torturar a si mesmo, esta crueldade contra si mesmo do animal homem, introduzida em sua vida interior, retirando-se com espanto de sua individualidade, encerrada no ‘Estado’ para ser domesticada, e que inventou a má consciência para se flagelar, desde que a via natural deste desejo de fazer o mal lhe foi cortada; este homem de má consciência apoderou-se da hipótese religiosa para levar seu próprio suplício a um grau espantoso de dureza e agudez.” F. Nietzsche, Genealogia da Moral

“Para enriquecer Deus deve-se empobrecer o homem; para que Deus seja tudo, o homem deve ser nada”. L. Feuerbach, A essência do cristianismo

“Eu vim para que tenham vida, e a tenham com abundância.” Jesus, Evangelho de João 10:10

O Jesus dos Evangelhos se apresentava como autoridade racional, negando sempre e categoricamente a alternativa fácil de arrebanhar multidões com poderes sobrenaturais ou a de despertar nelas um temor tal que as impelisse a alguma espécie de cega submissão. Sabia-se pastor de ovelhas e não de rebanhos cegados por qualquer ofuscante luz transcendente. Conhecia a estreiteza do caminho e a indispensabilidade da individuação.

Jesus não se interessava em exercer qualquer poder que colocasse medrosas multidões em estado de silencioso servilismo. Preferiu o penoso, longo e demorado trajeto do convencimento íntimo de cada homem, respeitando radicalmente sua liberdade e sua idiossincrasia; submeteu assim sua própria autoridade a uma crítica não apenas desejável como necessária.

Mas em algum momento da história de sua interpretação o Evangelho que promete vida abundante se decompôs em ética autoritária, sua personagem central em uma autoridade irracional e arrogante; este Evangelho esvaziado de seu anúncio fundamental é que sofria as críticas de Nietzsche e Feuerbach, um Evangelho cuja meta vital é o empobrecimento do homem, o estímulo do sacrifício que alimentará a bocarra do Sagrado.

O mesmo Evangelho decomposto em ética autoritária ajudará a distorcer o conceito clássico de virtude. Erich Fromm lembra-nos afirma que Aristóteles empregava a palavra virtude para referir-se a excelência; o virtuoso seria aquele que assume a responsabilidade pela sua realização pessoal, o homem que explora todas as suas potencialidades, sempre partindo do princípio de que bom é aquilo que é bom para o homem, e mal é aquilo que é nocivo a ele. A contrario senso, naquela distorcida versão do Evangelho, o virtuoso passa a ser aquele que transfere a outro a definição do que é bom e do que é mau, e vive exemplarmente e em sacrifical obediência de acordo com aquelas definições alienígenas.

Alguém poderia propor que uma ética que parta do princípio de que bom é aquilo que é bom para o homem, e mal é aquilo que é nocivo a ele, não é, em absoluto, uma ética adequada ao Evangelho, pois sublinharia a individualidade e, em última instância, permitiria o desenvolvimento de um egoísmo que se opõe cristalinamente ao espírito geral do Evangelho. O nosso interlocutor estaria correto apenas se conseguisse provar que o egoísmo é realmente bom para o homem.

O mais lamentável na equivocada leitura que reduziu o Evangelho a uma ética autoritária foi seu êxito em obscurecer o cerne da mensagem evangélica de salvação, qual seja, sua irrestrita vocação em libertar o homem a partir de dentro, em ajudá-lo a encontrar em si o manancial de onde brotam os rios da Vida Plena (Jo 7:38).

* * * *

55 comentários:

Anônimo disse...
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Alysson Amorim disse...

“Estou falando da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os casos, isto não é bom: mas experimentar estes sentimentos no momento certo, em relação aos objetos certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são características da excelência moral. A excelência moral, portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de várias maneiras, ao passo que só é possível acertar de uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é por isto que o excesso e a falta são características da deficiência moral, e o meio termo é uma característica da excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a maldade é múltipla” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.42)


“... em relação a todas as faculdades que nos vêm por natureza recebemos primeiro a potencialidade, e, somente mais tarde exibimos a atividade (isto é claro no caso dos sentidos, pois não foi por ver repetidamente ou repetidamente ouvir que adquirimos estes sentidos; ao contrário, já os tínhamos antes de começar a usufruí-los, e não passamos a tê-los por usufruí-los); quanto às várias formas de excelência moral, todavia, adquirimo-las por havê-las efetivamente praticado, tal como fazemos com as artes. As coisas que temos de aprender antes de fazer, aprendemo-las fazendo-as – por exemplo, os homens se tornam construtores construindo, e se tornam citaristas tocando cítara; da mesma forma, tornamo-nos justos praticando atos justos, moderados agindo moderadamente, e corajosos agindo corajosamente. Essa asserção é confirmada pelo que acontece nas cidades, pois os legisladores formam os cidadãos habituando-os a fazerem o bem; esta é a intenção de todos os legisladores; os que não a põem corretamente em prática falham em seu objetivo, e é sob este aspecto que a boa constituição difere da má.” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômacos, p.35-6)

Alysson Amorim disse...

Não, eu não li a "Ética" de Aristóteles. Os trechos citados encontrei em uma pesquisa na internet. Se quiser nos dar sua lição da filosofia aristotélica, esteja à vontade.

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Alysson Amorim disse...

Agora, sim, Jether. É que sou um incorrigível mentiroso.

Anônimo disse...
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Alysson Amorim disse...

O sabia por intermédio de Fromm.

ROGÉRIO B. FERREIRA disse...

"sua irrestrita vocação em libertar o homem a partir de dentro"

Visto que, não é o que entra que contamina mas o que sai. Visto que, há necessidade primeira de limpeza no interior do copo.

"O nosso interlocutor estaria correto apenas se conseguisse provar que o egoísmo é realmente bom para o homem."

Costumo entender que existe um egoísmo saudável e um doentio. Sem dúvida ninguém em sã consciência diria que um egoísmo doentio é bom. Logo, a individualidade continua sublinhada de uma forma saudável.

Daí, Mt 7:12 "Portanto, tudo o que vós quereis que os homens vos façam, fazei-lho também vós, porque esta é a lei e os profetas."

Isso me faz pensar que se os católicos são aqueles que, de fato, vivem e desfrutam a graça e o evangélicos (em sua maioria conservadora) no seu zelo exacerbado são os que sofrem sob o julgo da lei (ética autoritária), como Paulo Brabo certa vez percebeu, sou capaz de como cristão me sentir mais católico do que protestante. Talvez por isso me senti tão bem nas missas nas últimas vezes que fui ao Brasil!!!

Parabéns, Alysson, pelo rico e profundo texto.

Felipe Fanuel disse...

Alysson,

Lamento também que a lei tenha solapado a graça em leituras equívocadas daquele homem pobre de Nazaré. Preferir a moral (ética autoritária) à vida abundante, que revela a liberdade prometida no Evangelho tem sido um caro caminho escolhido pelo protestantismo contemporâneo brasileiro.

É triste e digno de lágrimas.

Abraço.

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Aristóteles nos arranca do solipsismo ao associar felicidade e política. Mais tarde, são Tomás, inspirado em Aristóteles, nos dará as primícias de uma ética política, priorizando o bem comum e valorizando a soberania popular e a consciência individual como reduto indevassável.
Há em nós um senso inato do dever e não deixamos de fazer algo por ser pecado, e sim por ser injusto.

Anônimo disse...

Alyssom,


Acabamos falando do mesmo tema...

Mas teu texto está perfeito!


/// A extrema Santidade só se alcança na profunda Tentação.



/// Abraços, flores, estrelas..

abstrato de tomate disse...

ótima leitura.

Norma disse...
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Norma disse...

Olá a todos!

Entro novamente no debate deste blog porque quero compreender de fato do que vocês (Alysson, Felipe, Paulo Brabo e demais blogueiros que parecem concordar entre si) se queixam tanto. Sem ironias.

É certo que o protestantismo brasileiro não está às mil maravilhas, muito longe disso; mas muitas vezes eu tenho a impressão de que as queixas apresentadas por vocês vão na contramão das queixas que eu faria/faço. Por exemplo, falo do anti-intelectualismo do meio evangélico, enquanto vocês reclamam que há teologia demais. Só um exemplo.

Mas, sobre este post, eu teria uma pergunta a fazer ao Felipe Fanuel e gostaria muito que fosse respondida com toda sinceridade. Pode ser?

É o seguinte. Ele escreveu: "Preferir a moral (ética autoritária) à vida abundante, que revela a liberdade prometida no Evangelho tem sido um caro caminho escolhido pelo protestantismo contemporâneo brasileiro." Poderia explicar, em linguagem didática, o que é 'ética autoritária' e em que exatamente o protestantismo contemporâneo brasileiro a adotou? Poderia dar exemplos dessa 'ética autoritária'? E poderia, igualmente, falar do que representaria, na prática, a 'vida abundante'?

Obrigada e abraços.

Anônimo disse...

Venho acompanhando algumas discussões e, por vezes, as julgo um tanto confusas...Estou esperando as mesmas respostas que a Norma, creio que elas elucidariam melhor o quadro apontado...
Obrigado!
abraço à todos!

Anônimo disse...

O que seria a ética imposta?

A meu ver trata-se sempre de um sistema fechado, feito de claro e de escuro, inimigo de toda diferenciação e cego face à lógica do arco-iris, onde a pluralidade convive com a unidade. Cada verdade se encontra idissoluvelmente concatenada à outra. Questionada uma, desaba todo o edifício. Daí a intolerância e a lógica linear. Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos. Estes são praticamente inacessíveis à argumentação racional. Face aos demais caminhos espirituais ele é intolerante, pois significam simplesmente errância. Na moral é especialmente rigoroso, particularmente no que concerne à sexualidade e à família. É contra os homosexuais, o movimento feminista e os movimentos libertários em geral. Na economia é conservador e na política sempe exalta a ordem e a segurança a qualquer custo. Nem por isso deve-se renunciar ao diálogo, à tolerância e o uso da razão para mostrar as contradições internas, subjacentes ao discurso e a sua prática.

Estamos numa encruzilhada da história humana. Ou criar-se-ão relações multipolares de poder, equitativas e inclusivas com pesados investimentos na qualidade total da vida para que todos possam comer, morar com mínima dignidade e apropirar-se de cultura com a qual se possam comunicar com seus semelhantes, preservando a integridade e beleza da natureza ou iremos ao encontro do pior.

O Tempo Passa disse...

Xiii!!!
Acho que estamos voltando à discussão anterior, não é?
É válida, sem dúvida, e bastante rica.
Creio, porém, que os embates acontecem menos por divergência quanto ao tema e mais por uma profunda distância na maneira de se olhar o mundo (óculos, cosmovisão... qualquer coisa parecida).
Enquanto não se assumirem como usuários de "lentes" diferentes, o diálogo vai ser penoso.
Uma vez li um livro sobre Jesus que um grupo de marxistas e teólogos europeus escreveu (década de 70).
A primeira coisa que fizeram foi clarificar suas "lentes" e deixar os ataques de lado. O livro ficou ótimo!!!

Anônimo disse...
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Alysson Amorim disse...

"Aquele assunto", Jether, já estava encerrado. Mas explico novamente:

Trata-se apenas da interpretação que Fromm imprime a Ética de Aristóteles. Apenas isso. Mas vejo que é da sua (in)conveniência procurar chifre em bois.

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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Alysson Amorim disse...

Vejam só.

Temos aqui um orientador de pesquisa acadêmica. Preciso agora matar o coelho e mostrar o pau.

Vamos fazer o seguinte: leia as primeiras páginas de "Análise do Homem". Leia também todas as outras e me deixe em paz. Adeus, Jether.

Norma disse...

Olha, Rubinho, você entendeu errado. Minha pergunta é só uma pergunta mesmo, não uma tentativa de reanimar o debate anterior. Não pretendo argumentar sobre a resposta do Leonardo, apenas compreender como a visão e as críticas de vocês sobre os "fundamentalistas" ganham alguma concretude. Na maioria das vezes, acho os posts amplos demais, generalistas demais. Por isso, a pergunta.

Alysson e Felipe concordam com o Leonardo? Em todo ou em parte? Gostaria muito que dessem suas opiniões.

Obrigada e abraços.

Norma disse...

Ah, agradeço ao Leonardo por ter respondido.

Felipe Fanuel disse...

Oi Norma,

Quanto tempo não dialogamos! Acho que quase um ano. [Agradeço bastante por sua atenção ao meu comentário. Peço as devidas desculpas pela minha indelicadeza em não responder tão prontamente — é que estou de mudança e ainda não arrumei tudo. :-)]

Vou tentar ser bem simples, como parece ser esta sua expectativa. Utilizei o termo "ética autoritária" respeitando o conteúdo da postagem da casa, cujo anfitrião preferiu o uso desta expressão (e poderia ser qualquer outra) para identificar a antítese da proposta do Evangelho.

Acredito que o protestantismo no Brasil tem se caracterizado, pelo que observamos nas igrejas e nos púlpitos, por um frio moralismo legalista, que reduz a mensagem do Evangelho a um conjunto de regras morais. Esse fato está, ao meu ver, distante daquilo que entendo por graça e próximo daquilo que entendo por lei.

Jamais me colocarei como dono da verdade, mas é essa a maneira que interpreto a mensagem do Evangelho. Faço questão de dizer que respeito quem discorde, mas, por favor, entendam que essa é minha opinião. Posso estar equivocado aos olhos de muita gente, porém não é minha pretensão converter ninguém ao que entendo como mensagem do Evangelho. Se há identificação com aquilo que os saudosos senhores Brabo e Amorim escrevem, isso nada mais é do que um motivo para alegrar o meu coração e me sentir menos sozinho no mundo.:-)

Apreciei bastante a contribuição do Leonardo. Em termos práticos, a luta da humanidade é essa mesmo: construir um mundo de respeito e tolerância com o diferente, seja como for, custe o que custar.

Outro ponto. Não sou da opinião que há teologia demais nas igrejas protestantes, como você presumiu. Há um núcleo teológico comum, normalmente conservador, que se caracteriza principalmente não apenas por moralismo, como foi o assunto da postagem do Alysson, mas também por proselitismo. Há também nesse núcleo pouco senso de comunidade por causa do forte apelo individualista.

Portanto, compartilho de sua crítica: falta teologia. Contudo, para mim, uma teologia criativa, que leia e re-leia com reverente respeito sua tradição, que seja produzida no dia-a-dia das pessoas, em diálogo com a cultura, e com outras religiões, e que esteja sempre no estágio de provisória — mantendo um saudável esforço autocrítico — por estar disposta a mudanças.

Bom, é isso. Perdoe-me a simplicidade e a superficialidade de minhas colocações. Tentei ser direto, o que para mim já é muito difícil, com isso, deixando de aprofundar em alguns pontos dignos de horas de digitação. Quem sabe em algum kairos encontremos oportunidade para tal?

Bjs.

Norma disse...

Olá, Felipe!

Imagina! Para quem está de mudança, até que você respondeu bem rápido! :-)

Agora fico um pouco culpada em fazer mais perguntas, para não atrapalhar você. Mas responda só quando puder, ok?

Seguinte: você diz que há na igreja "um frio moralismo legalista, que reduz a mensagem do Evangelho a um conjunto de regras morais". Bom, eu perguntaria: quais regras? Fico um tanto atrapalhada com o uso da palavra "moral", porque o Evangelho tem de fato um conteúdo moral. Então, de que regras exatamente você está falando e sob que aspecto as igrejas deixam a moralidade cristã de lado para adotar um moralismo legalista?

Na verdade, a meu ver, o legalismo sempre anda de mãos dadas com a superficialidade (penso nos fariseus: dez regrinhas básicas e o sujeito já se sente "muito espiritual"), enquanto a verdadeira moralidade é profunda e entremeada à subjetividade. Mas prometo que não vou debater. :-)

Também fiquei curiosa quanto ao que você mencionou sobre "diálogo com outras religiões". Em que exatamente residiria esse diálogo?

Abraços!

Anônimo disse...

Olá querida Norma,

Parece que temos aqui outro debate interessante.

Esta é minha contribuição:

Sem dúvida no passado as igrejas eram bem mais legalistas do que hoje. Bateria e guitarras eram proibidas no culto. O rock, naquela época, era considerado como uma abominação, com toda probabilidade demoníaca em sua origem.
Outras proibições — usar maquiagem e jóias, assistir ou participar de esportes aos domingos, homens e mulheres nadando juntos (curiosamente intitulado de "banho misto"), compri¬mento das saias para as moças, comprimento dos cabelos para os rapazes — eram obedecidas ou não, dependendo do nível espiritual da pessoa. Isso sem falar no fumo e na bebida. Cresci com a forte impressão de que uma pessoa se tornava espiritual obedecendo a essas regras sem significado.
Minhas visitas a outras igrejas me convenceram de que essa escada para atingir a espiritualidade é quase universal. Os católicos, os presbiterianos, os assembleianos, os luteranos e os batistas, todos têm suas próprias agendas de usos e costumes do legalismo. Você obtém a aprovação da igreja, e presumivelmente de Deus, seguindo o padrão prescrito.
Não é para se admirar. Olhemos nossas origens protestantes e católicas: consideremos apenas um exemplo, a Genebra de João Calvino. Ali, as autoridades podiam convocar qualquer pessoa para ser interrogada a respeito de questões da fé. A freqüência à igreja era compulsória. As leis abrangiam questões tais como quantos pratos podiam ser servidos em cada refeição e a cor apropriada das roupas.
Existia uma lista enorme de diversões proibidas por Calvino que vai desde banquetes, dança, canto, até jogar cartas, caçar, embriagar-se; dar aos filhos nomes que não sejam de personagens do Antigo Testamento; ler livros "imorais ou profanos".

Por isso, olhando toda a história legalista cristã, Paul Johnson salienta: "Tentativas de aperfeiçoar sociedades cristãs neste mundo, quer dirigidas por papas quer por revolucionários, acabaram degene¬rando em terror vermelho".

Até mais,

Filipe

Alysson Amorim disse...

Norma,

Se o post é "amplo e generalista" é porque creio tratarmos de um estado de coisas (a transformação do Evangelho em legalismo) bastante geral, presente nesta ou naquela roupagem na Igreja x ou y.

Neste exato momento a Igreja Católica movimenta-se para impedir a distribuição de preservativos no Carnaval, enquanto na TV um padre demoniza o prazer gerado pelo sexo.

Uma amiga evangélica explica-me que só escuta músicas evangélicas; Djavan é profano e não pode contribuir em nada com seu "crescimento espiritual".

Um amigo muito "espiritual" discursa todo seu ódio contra os homossexuais; foi o pastor quem disse que eles eram isso e aquilo.

Em uma comunidade no Orkut a revolta é geral quando questiono a postura de um pastor que "amaldiçoou" do púlpito "todas as adolescentes que transam antes do casamento." Não deveria questionar um "ungido do Senhor".

Em minha Igreja Batista - com seus 50 membros - recordo-me do dia em que um amigo de infância foi excluído do rol de membros: um cristão digno não usa piercing, e também daquele outro dia em que um casal foi igualmente excluído: a menina estava grávida antes de se casar. A mentira, a fofoca, a hipocrisia, o orgulho, nada disso é motivo para exclusão.

Etc, etc, etc.

A contribuição do Leonardo é riquíssima.

"Daí sua força de atração para espíritos sedentos de orientações claras e de contornos precisos."

Talvez seja esta a nota que explica melhor as razões da decomposição do Evangelho naquilo que chamei de "ética autoritária". O Evangelho propõe uma individuação que exige o afastamente daquela zona de segurança.

Um abraço.

Paulo Brabo disse...

Norma,

Ouça o Leonardo.

No que me diz respeito não se trata de aversão à Norma, mas de aversão [adquirida] ao debate – e aqui pode estar parte da resposta que você tanto busca.

Se existe de fato um grupo de blogueiros do qual faço parte (e, para anarquistas como eu o termo "grupo" deve ser usado muito livremente) e que concorda a respeito de alguma coisa, aquilo com que [às vezes, provisoriamente e precariamente] concordamos é que não é necessário ou mesmo produtivo concordarmos a respeito de qualquer coisa – e muito menos, naturalmente, gastarmos tempo argumentando em favor da nossa própria idéia como se disso fosse nascer alguma coisa boa. Pode ser, sim, uma faceta daquilo que você chama de relativismo, mas prefiro chamar de "aspiração pré-moderna" .)

É minha impressão (e pressinto isso também no Alysson e muitos outros) que o cerne daquilo que tenho a dizer (aos outros, mas principalmente a mim mesmo) só pode ser dito tangencialmente, através de aproximações. É daí que surgem esses textos precáros e generalistas, que recusam-se a deixar a argumentação bem amarradinha. Pode parecer frustrante pra você e para mais gente, mas o mais importante neles é precisamente isso, o fato de deixarem a coisa apenas sugerida. Se fosse possível explicar o reino de Deus diretamente não seria necessário fazer uso de parábolas a aproximações.

Por essa mesma razão creio que a essência da pessoa e do pensamento do Alysson não se encontra em textos passavelmente "racionais" como este, mas na experiência febril da sua ficção. Melhor talvez seria entender tudo o que é dito por ele (e talvez por todo mundo, inclusive você) como uma tentativa perpetuamente precária de expressar-se através da ficção. No meu caso esse esforço está, naturalmente, imbuído da convicção de que a ficção é capaz de abracar e representar a realidade com muito mais propriedade do que o texto racional com argumentação estanque e "bem embasada".

Mas por que alguém se prestaria a tentar expressar tangencialmente aquilo que pode ser descrito através de palavras e expressões muito precisas, termos cujo sentido se encontra sensatamente estabelecido nos dicionários? A resposta é evidente: por acreditar que alguns conceitos não podem ser manuseados dessa forma supostamente isenta e direta. As "contribuições" do jerther apenas demonstram, à sua própria maneira espetacular, o quanto a preocupação com termúnculos e autoridades pode pulverizar um debate ao ponto da paralisia. É por isso que prefiro em geral não responder a questionamentos como alguns que você faz – "porque você usa o termo x para referir-se a y?", ou "a expressão z não estaria carregada de subjetividade?". Sou o primeiro a reconhecer que uso as palavras precariamente. Não estou pronto a encontrar nas palavras ou oferecer nelas uma solidez que não possuem – e o mesmo pode ser dito do meu raciocínio.

Este meu texto pode ser desconstruído com tanta facilidade quanto qualquer texto seu, mas em geral recuso-me a fazer isso com você. Em parte é isso, penso, o que o Rubens diz quando afirma que usamos lentes diferentes. Quem acredita que o debate leva a lugar nenhum deve recusar-se, sempre que possível, a debater. A idéia do debate como proveitoso faz, ela mesma, parte da "ética autoritária" (uso a expressão livremente) que deve ser denunciada e abolida, e isso o Alysson explica aqui mas também em outros lugares. Por isso eu, que tenho prazer em sórdido em trocar argumentos com quem comete a indiscrição de discordar de mim, ofereço o silêncio. Acredite, dói mais em mim do que em você.

Anônimo disse...

Gente, vejo nesse texto a contribuição para a construção de um mundo melhor. Ele inibe a discussão entre prós ou contras e exalta apenas o diálogo. E o que seria isso no campo interreligioso?

O diálogo interreligioso ressalta a compreensão e o respeito a todas as tradições religiosas. A experiência de viver a fé em uma “aldeia global” exige que os diferentes ensinamentos religiosos saibam responder as situações que ameaçam a paz e a justiça. Ele preserva e revitaliza as identidades culturais e as disciplinas espirituais, também enfrenta os desafios sociais relacionados, por exemplo, com a injustiça, a discriminação, a intolerância, a violência etc. É necessário que todas as religiões realizem um exame profundo e real da auto-crítica com respeito a certas práticas que tem favorecido as divisões e inclusive a repressão. Também é necessário que as religiões respondam a situações onde a ideologia de alguns governos censura, controla, desvia e manipula a informação de maneira que os fiéis não possam conhecer sua herança, nem a de seus vizinhos.

Entende-se que o diálogo de saberes é tão importante hoje em dia
como o diálogo de tradições dos diversos povos.

É isso que penso, Alysson e demais, sobre o assunto.

Axé Babá!

Davi Richard disse...

Senhor Alysson, muitas pessoas tem fundamento para reclamar da interferência moralista da Igreja na vida pública, mas a esquerda não tem! Não digo que o senhor seja comunista mas é clara a tendência deste grupo de blogueiros.

Grupos religiosos em geral não teriam o direito de impor suas crenças sobre os outros, não teriam o direito de forçar na sociedade os valores que eles pregam - isso seria imoral, terrível, (e, é claro) medieval.

Mas com que direito comunistas mandam os religiosos pararem de impor suas crenças nos outros?

Deus abençoe a todos vocês.

Bárbara disse...

Olá conterrâneo!

Vim agradecer sua visita na minha página.. Como tem um caráter mais pessoal ela não rende discussões tão empolgantes como aqui, mas está de portas abertas para quando quiser voltar. E certamente voltarei aqui também, você escreve muito bem...

Um abraço!

Anônimo disse...
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ROGÉRIO B. FERREIRA disse...

Oi Jacomini Júnior,

quero aproveitar esse Post, com a permissão do Alysson, para te agradecer, eu havia enviado para seu Blog o agradecimento, mas parece que vc está tendo algum problema lá, ou não? De qualquer forma, meu muito obrigado.

Se não me engano seu último Post, tratava de como vc havia sido censurado e expulso de alguns Blogs. Até lhe apresentei minha solidariedade, pois o Gustavo passou a não publicar mais meus comentários no Blog dele.

Enfim, fique tranqüilo, pois o Alysson é um cara bem educado e não faria nenhuma dessas grosserias com você, salvo engano.

Meu conselho é só para você guardar seu talento analítico para, quem sabe, numa outra oportunidade poder contribuir mais para o debate? E todos saimos lucrando.

Abrçs,

Rogério

Alysson Amorim disse...

Jether,

Você é o sujeito mais curioso que já passou por aqui. Se digo que Erich Fromm disse isso ou aquilo você me acusa (injustamente, não é mesmo?) de usá-lo como uma autoridade para corroborar qualquer coisa que "tirei da minha cabeça". Mas quando uso um termo - destacado, aliás - e não me refiro diretamente ao autor que o cunhou, sou acusado de roubo.

Sugeriria a você a deixar de acreditar que Jesus ofereceu a nós o caminho de uma vida abundante. Só o sabemos por intemédio de João, o que não é confiável e suficiente, segundo sua lógica.

Adeus.

Anônimo disse...
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Davi Richard disse...

Aí nao meu irmao...

Jesus morreu há uns 2000 anos, Ética de Aristóteles está na minha estante, quer ver?

Voce está a falar que Aristoteles está mais próximo de voce que Jesus!

Misericórdia.

Anônimo disse...
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Davi Richard disse...

Sim, querido,

mas como você se expressou "Jesus morreu a 2000 anos" contraposto a "o livro Ética está próximo" você está dando a entender que para você, Jesus não estaria próximo, nem vivo! Assim o livro de Arístoteles seria sua Bíblia. Francamente!

O irmão é crente?

Quarto do Desejo disse...

"Coais um mosquito, e engolis um camelo". Jesus Cristo - Ressurecto

Tenho quase uma pena dos que têm que despender energia pra refutar a idéia generalizada de que "crente" é chato.
Não me dou a esse trabalho. Abaixo a cabeça, quando não dou minha mão à palmatória, e convido pra tomar uma cervejinha pra amenizar um pouco.

Quarto do Desejo disse...
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Anônimo disse...
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Quarto do Desejo disse...

Jether, foi apenas uma observação minha quanto à sua postura nesse forum, sem querer desmerecê-lo na minha apreciação desse debate aqui.

Você está coando mosquito e engolindo camelo ao se ater insistentemente num detalhe que não faz jus à reflexão proposta. E isso mesmo tira a vitalidade do debate, levando-o à paralisia mesmo e à vertigem de tanto girar num eixo cujo centro, a meu ver, está longe de ser a força gravitacional da palavra trazida pelo Alysson. Se eu estiver errado, que ele me corrija.

Quanto ao convite pra tomar uma cervejinha, aceite-o como metáfora. Eu prefiro mesmo um café com broa de fubá. Com ela (a metáfora) quero dizer o seguinte: Relaxe, meu caro Jether! Isso aqui não é uma monografia nos termos de uma ABTN.

Alysson, se eu estiver errado, a cerveja é por minha conta. rs

Agora, um pouco de Gilbert Keith, que faz bem:

“Existe um caminho que vai dos olhos ao coração sem passar pelo intelecto.”

Acho que certas leituras têm que ser feitas antes com o coração!
É isso!

Abraços!

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

O inicio imemorial do cristianismo sempre esteve ligado a violência e radicalismo. Desde o Egito, quando se reuniam em nome de Atom, horus e Ra. E sempre foi dualista, acreditando num supremo bom e outro mau. Os relatos históricos posteriores ao mito de Jesus, também relatam radicalismo e violência. Os proprios evangelhos incitam a violência. No cerne da fé existe o que Nietzsche chamou de niilismo, a crença de que a pessoa tem "outra chance". Sendo assim a vida deixa de ser o maior bem. Os relatos de que cristãos se reuniam am catacumbas, ação proibida para o judaismo, não é devido a perseguições, eles já faziam isto no Egito. O fato da fé se tornar uma fé de estado, romana, é em função de uma necessidade de guerra.