sábado, janeiro 05, 2008

O Espírito e a Letra

A interpretação rígida e literal é a espada com a qual os fundamentalistas profanam as Escrituras, a espada com que matam o Espírito, mantendo intacta a letra, esta carcaça salpicada de pólvora. Neste ponto, metade do demoníaco serviço alcançou êxito; resta agora tomar a letra das Profanadas Escrituras e fazer sangrar todo indício de vida e liberdade, estendendo os domínios do Reino da Lei.

O problema do Espírito é que com ele não se domina; é sopro e não cetro, brisa e não espada, e acima de tudo, é tão absurdamente democrático quanto o sopro e a brisa. Calar o Espírito é garantir a hierarquia que ele impede, é impor a autoridade que ele destrona.

Matem o Espírito, mas poupem a Letra, eis uma ordem frequente nos castelos das autoridades eclesiásticas. Afinal, calar o Espírito é uma forma de impedir a compreensão de que não precisamos mais de sacerdotes, posto que somos os sacerdotes de nós mesmos. Trocando em miúdos, o Espírito delata aos homens a imanência do infinito, pondo em xeque o rei que se propõe mediador.

O Espírito, bem o sabemos, alça seu vôo contingente nos ares da liberdade (II Co 3:17), é ali o seu Reino, ali poderemos ouvir a sua voz e vê-lo acalentar, no ninho do chronos, os ovos que produzem a vida eterna. Naquele lugar mágico poderemos saciar nossa fome do ultraterreno, alimentado-se com os ovos da imortalidade. O melhor da história, todavia, é que o Reino em questão se acha em algum lugar dentro de todos nós. Tenho a impressão que se queremos alcançá-lo, o primeiro e fundamental passo é deixar os domínios do Reino da Lei, construído pela espada dos inimigos do Espírito.

* * * *

23 comentários:

Quarto do Desejo disse...

Alysson, meu nobre! Resolvi fazer um aquecimento ao ler seu blog antes de inaugurar uma primeira postagem no meu. Interessante é que eu estava exatamente travando aquela batalha interior a alguns dias na busca da melhor palavra para, no mínimo, identificar as intenções do meu espaço, para não dizer defini-lo ou delimitar a abordagem, como é feito nos moldes acadêmicos ( até parece que pretendo escrever uma mono-tona-grafia). O fato é que, como já compartilhei com você, as definições, como produto do arranjo da letra, enjaulam.

Enquanto lia essa postagem, pensava a respeito das motivações e intenções tanto para subjugar O Espírito à letra, quanto para subjugar-nos a nós mesmos ao domínio de supostas autoridades da Lei. E você mesmo deu o desfecho.

Reside em nós mesmos, em última instância - melhor se fosse em primeira instância para pouparmos tempo - a responsabilidade de conquistar a liberdade mediante escolhas.
Isso exige madurez do espírito. Um espírito verde ainda é um corpo cego que tateia no escuro as paredes da letra que lhe confere uma sensação de proteção e conforto. Só ali se sente seguro.
Quando, no entanto, é confrontado na largueza do caminho da vida por todas situações possíveis, se porta como aquele sacerdote que não sabia se portar diante de um ferido à beira do caminho. Isso porque a letra não admite nada que esteja fora de sua programação.A letra mata mesmo o que ela não pode dominar!

Abraços e boa semana!
P.S. Bem providencial para mim essa postagem! rs

Dos dois lados do Equador disse...

Amém.
Bjão,

Felipe Fanuel disse...

Essa foi a melhor coisa que li hoje! Vejam só: você vê o Espírito! Aquele que sustenta toda a criação. O Espírito fala através da letra, mas a letra não fala através do Espírito. Que coisa! Liberdade e graça, afinal, não se misturam com legalismo e controle de poder. Perigoso espalhar isso por aí: mafioso é que não falta para re-iniciar a caça às bruxas. Ai, ai, já vem a gente presa novamente a este chronos! Ninguém entende. O Kairos nos tira este peso. Era para todo chronos ser kairos. Lamentável. É possível ver as lágrimas do Espírito escorrendo, frouxamente, femininamente. Nada pode fazer, coitado. A macheza não faz parte de seus atributos. (Seu comparsa divino já em tempos difíceis bem que precisou recorrer a este recurso para vencer exércitos, conquistar terras e provocar um teocídio — "tempos bons aqueles", diriam as bocas escumantes dos neo-conservadores fundamentalistas.) A grande verdade, meu caro Amigo, é que a Terra chora de saudade do tempo em que o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. Lá Ele era Soberano, porque não havia ser humano. (Ih, até rimou!)

Aquele abraço.

Anônimo disse...

Alysson,

a mania que muita gente tem de aprisionar e controlar tudo se frusta diante da ação inventiva do Espírito. Eu acho que é por isso que Espírito é Rua'h, sopro, arrrrrrr! Ninguém consegue segurarrrrrrrr! Temos que aprender a lidar com o obscuro, com o mistério e com a incapacidade diante Daquele que não se pode medir. Assim fazendo o nosso viver se torna ventilado. No calor ardente... Rua'h sopra a sua brisa sobre nós.

Graça, paz e bem!

Anônimo disse...

Cara te adimiro pra caramba... e tb seus artigos!!!
Parabens meu grande amigo!

O Tempo Passa disse...

O Brabo postou hj, talvez cutucado por teu texto, uma bela discussão sobre interpretação de texto.
Muito legal. Soma-se ao teu e temos uma riqueza!!!

Paulo Brabo disse...

Lágrimas de absoluta reverência. Não é sempre que o Espírito consente em soprar, precariamente, por meras letras.

Gustavo Nagel disse...

Mas esses conservadores que arrancam olhos e mãos e pés a fim de entrarem no Reino de Deus merecem de fato uma repreensão. Um grande absurdo tudo isso.

Paulo Brabo disse...

Bah! Olhos, mãos, pés, quem precisa deles? O literalista que se preze deveria arrancar algo importante, como fez Orígenes.

Gustavo Nagel disse...

Sim, sim. Orígenes, aquele pastor fundamentalista americano, que cortou o pinto. Mas ele é considerado herege pela denominação dele até hoje, apesar de vermos literalismos como esse todos os dias. Bem lembrado.

Norma disse...

Gargalhadas para o Orígenes fundamentalista! :-D

Agora, do post e dos comentários, fica apenas uma leve e incômoda sensação: a "Letra" no texto bíblico não é bem a mesma "Letra" contra a qual os pós-modernos se levantam. A atual e apressada confluência entre as duas pode ser apenas uma outra maneira, paradoxal, de buscar se sentir seguro sob a contínua torrente de palavras que louvam a insegurança. (Vocês não sentem que a pós-modernidade está ficando velha? Tão velha quanto a brilhantina, o cadillac. Mas como se entupiu de plástica, a coitada.) Mas não se preocupem. É só uma sensação.

Quarto do Desejo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gustavo Nagel disse...

Alguém que arranca o próprio pinto (e a palavra é vernácula, Júlio) não merece admiração alguma -- não pelo ato em si, como você o fez. Orígenes talvez tenha méritos intelectuais, mas é a primeira vez que vejo alguém elogiá-lo por tamanha estupidez. Meus parabéns.

Quarto do Desejo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Quarto do Desejo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Quarto do Desejo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Gustavo Nagel disse...

Júlio, meu caro, eu não disse que seu problema foi com a concordância. Eu disse que a palavra que eu havia utilizado era também vernácula, de modo que a sua pergunta não fazia o mínimo sentido.

Só lembrando que eu encerrei a leitura no primeiro "vou desenhar um pouquinho".

Até.

Quarto do Desejo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Quarto do Desejo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Unknown disse...

Você está invertendo um pouco as imagens da própria Bíblia, Alysson. Você diz que homens pegam suas interpretações literalistas como espadas e rasgam a Bíblia e destróem o Espírito. Mas as Escrituras, entendidas literalmente (você sabe, a interpretação demoníaca usada pelos fundamentalistas pra esmagar a verdade e a democracia) retratam o contrário: as Escrituras são a espada que rasgam o coração dos homens, afiadas a ponto de destrinchar alma e espírito. O homem que interpreta as Escrituras literalmente (respeitando, é claro, os gêneros literários dentro da Bíblia) não é o que profana as Escrituras ao as tomar nos termos em que foram escritas e aceitar o que os autores claramente lhes disseram (que deturpação profana, respeitar a intenção do autor quando nós queremos ler outra coisa no texto!), mas é o que deixa que o texto fale a ele, e lhe perfure o Espírito. Você pega os que aceitam as palavras da Bíblia como os autores as intencionavam, os que buscam o significado que os autores queriam dar aos textos, os que submetem, digamos assim, à espada da palavra, e dizem que são eles que retalham a palavra e o espírito. Se aceitar a palavra em seus próprios termos é corta-la e desrespeita-la, o que é, exatamente, pegar pedacinhos aqui e ali que nos agradam e ignorar aquilo que nos parece contra o Espírito?

Mas aqui vai a posição de um humilde suposto assassino do Espírito (que ora, e chora, e ama, e respira como qualquer filho de Deus): temos dois testemunhos, o testemunho do Espírito em nós e o testemunho escrito, a Bíblia. O Espírito é a presença de Deus em nós, e sem ele nossas vidas seriam vazias. Mas o coração, como diz a Bíblia-violada-e-interpretada-literalmente, é desesperadamente corrupto, e até nossa consciência é arbitrária, às vezes ardendo quando pecamos numas coisas, outras vezes silenciosamente se desculpando quando nos indulgimos em nossos vícios ou males inegociáveis. Assim, o Espírito é sempre confiável, mas nossa percepção dele não é: e o corolário de sua gentileza é que ele é muito fácil de ignorar. Assim, se buscamos respostas finais sobre nossa vida como seres humanos e seres infinitos, temos que ir para a Bíblia; o testemunho do Espírito pode ser fraudado, ignorado, jogado de lado ou desobedecido em secreto, mas a Bíblia nos confronta nos espaços abertos, em palavras que pulam à nossos olhos, com sua espada em mãos. E quando você desarma a Bíblia, e diz que toda interpretação dela tem que ser subjetiva, e que nossos corações (maus e desesperadamente corruptos) são os que devem dominar sua interpretação para que o Espírito não morra (e qual é sua base para dizer que o Espírito morre nas mãos de um literalista, ou até de um fundamentalista bronco e rude? O Espírito é misericordioso ou não é?), você ignora o único testemunho objetivo, o único registro permanente.

E é esse o ponto ao qual quero chegar. A dicotomia não é entre um Espírito morto com o literalista e o Espírito vivo com o que interpreta a Bíblia "livremente"; a dicotomia é entre o Espírito vivo entre os que obedecem a Palavra de Deus e o Espírito ignorado por um povo que interpreta os impulsos divinos do Espírito e a Palavra inspirada de Deus conforme os mandos e desmandos de seu coração, as modas intelectuais de sua época, e uma pitadinha da filosofia que ele leu naquela semana. Ou obedecemos a palavra de Deus e obedecemos ao Espírito, ou obedecemos aos impulsos de nossos corações corruptos e corremos o risco de ignorar completamente tanto o Espírito quanto as Escrituras.

Alysson Amorim disse...

Caro João,

As Escrituras são a espada que rasgam o coração dos homens, afiadas a ponto de destrinchar alma e espírito.

Rasgam o coração dos homens - a metáfora é bela, desde que permaneça metáfora (pelo menos nisto estamos de acordo). Rasgam o coração dos homens (positivamente) desde que parta do coração de cada homem e não da voz mofada de sei lá que defunto. Caso parta de fora, continuará rasgando o coração, mas rasgando o que há de vida e liberdade lá - isso quando não rasga a própria carne pulsátil, o próprio centro motor da circulação do sangue (chegamos, neste ponto, ao absoluto extermínio da metáfora - e quem o permite, diga-se, não são os que "querem ler outra coisa no texto", mas os literalismos). Eis a Letra sem o Espírito. Eis a Letra quando introduzida de fora para dentro: a Letra "que mata" como a espada - e a advertência não é minha.

o Espírito é sempre confiável, mas nossa percepção dele não é: e o corolário de sua gentileza é que ele é muito fácil de ignorar.

Sim, o Espírito é pouco viril - nada próximo ao Iavé fardado. Ignorá-lo é muito fácil (e foi ele quem quis assim): eis aí o inevitável risco da genuína travessia cristã, um risco para todos, literalistas e espiritualistas. A diferença é que, calado o Espírito, os primeiros se agarram na espada e os outros estão nus.

Prefiro estar nu a estar armado. Nu, compreenderei minha baixeza, minha absoluta dependência da Graça. Armado, ferirei a mim mesmo e a outros com o peso e a lâmina da Lei, a "carcaça salpicada de pólvora".

Abração.

Norma disse...

João escreveu: "A dicotomia não é entre um Espírito morto com o literalista e o Espírito vivo com o que interpreta a Bíblia 'livremente'; a dicotomia é entre o Espírito vivo entre os que obedecem a Palavra de Deus e o Espírito ignorado." Perfeito. Mas a modernidade só conhece a primeira dicotomia, aplicando-a meio que indiscriminadamente, a toda leitura. Isso porque, ao acusar os racionalistas de colocar a objetividade acima da subjetividade (uma crítica que muitas vezes não é mesmo infundada), os modernos costumam inverter a subordinação, elevando os caprichos da subjetividade sobre qualquer objetividade "tirana". E isso foi abundante nas interpretações textuais: uma "liberdade" que primava quase sempre por ignorar sentidos básicos. Lacan falando da árvore do conhecimento em Gênesis, por exemplo, é sofrível.

Anyway, quem quer que coloque "a Letra mata, o Espírito vivifica" em seu devido contexto - Paulo em 2Co 3:6 explicando a lei e a graça: foi preciso que a lei nos matasse (nos apontasse o pecado) para que o Espírito pudesse nos vivificar em Cristo - entenderá que a interpretação do Alysson, que hoje é até corrente nos lugares-comuns evangélicos, simplesmente não procede.

Norma disse...

Ah, faltou dizer: desculpe, Alysson, não me dirigir diretamente a você no comentário anterior. É que tenho medo, sinceramente: quem fala desse jeito dos "fundamentalistas" (e recentemente tenho sido bastante agraciada com esse epíteto) costuma estar tão armado. ;-)