segunda-feira, maio 14, 2007

Dostoievski e o projeto da modernidade


Nunca me esqueço das Notas do subterrâneo (ou Memórias do subsolo, em outra tradução), livro do romancista russo Fiódor Dostoievski. Não se trata do típico romance russo: calhamaço, às vezes cansativo, apesar de sempre compensador. É um livro de poucas páginas. Poucas e suficientes.

Memórias que não me deixam. Lidas na adolescência, sempre renascem para perturbar. Fraturar. Agora, na faculdade, lendo Habermas, sua crença no projeto da modernidade, seu caminho para constituí-lo – a razão comunicativa – agora, ouço novamente os rumores sôfregos do personagem inominado de Dostoievski, a gracejar da razão, a ironizar o projeto civilizatório.

A crítica ácida ao homem de ação (pragma, donde pragmático) é atualíssima. “Tal cavalheiro arremete frontalmente contra seu objetivo como um touro enfurecido, chifres baixos, e só um muro o detém”.

O narrador-personagem define-se como um rato, um homem do subterrâneo. “Talvez seja um rato apuradamente consciente, mas sempre será um rato, enquanto o outro é um homem (...) Vejamos agora esse rato em ação. Suponhamos, por exemplo, que se sinta insultado e queira também vingar-se. Pode haver nele um acúmulo de raiva maior do que no home de la nature et de la verité. O desejo mesquinho de vingar-se corrói-o ainda mais violentamente do que ao home de la nature et de la verité pois este, na sua estupidez inata, considera sua vingança uma justiça pura e simples, enquanto que o rato, devido à sua consciência, não acredita nesta justiça. Mas chegamos afinal ao fato, ao próprio ato da vingança. Além de sua baixeza fundamental, o infeliz rato conseguiu reunir em torno de si tantas outras baixezas sob a forma de dúvidas e interrogações (...) que inevitavelmente se formou em torno dele uma trama fatal, uma trama nauseabunda, feita de suas dúvidas, emoções, e afinal, do desprezo cuspido em cima dele pelos homens diretos, que se postam orgulhosamente em redor como juízes e ditadores e se riem dele às gargalhadas. Evidentemente, aí não lhe resta senão rejeitar tudo com uma patada, ostentando um sorriso de pretenso desprezo, no qual nem ele mesmo acredita, e sumir-se miseravelmente em seu buraco.”

Aquele personagem de Dostoievski lembra figuras como Foucault, que construiu uma crítica a modernidade valendo-se dos instrumentos da própria modernidade. Uma crítica que era auto-deslegitimadora, porquanto todo e qualquer saber estaria, na origem, fundado (e viciado) por um poder.

Em Memórias do subsolo não há redenção. O personagem se perde num paradoxo semelhante ao de Foucault. No entanto, vale lembrar que este Memórias é apenas o ponto de partida do melhor da obra do gênio russo, que inclui Irmãos Karamazov e Crime e Castigo, obras onde encontramos (aí sim) o caminho dostoievskiano da redenção, que aponta para o Calvário.

* * * *

4 comentários:

Mariangela disse...

Heuashuehaus, o q comentar? Eu tinha esse livro, exatamente o mesmo da foto!! mas de tanto levar pra cá e pra lá comigo acabei perdendo ele! =x hahaha

Ainda tô procurando xD Mas Irmaos Karamazov e C&C estão sãos e salvos, tá? heuahsuehausha.

Bjo sobrinho!! :*

Felipe Fanuel disse...

Grande Alysson,
Excelente coluna literária. Senti que estava lendo uma matéria do caderno "Mais" da Folha.

Se você está lendo Habermas, tem mais uma razão para estudar Tillich. (hehehe) A escola de Frankfurt toda está de certa maneira relacionada com este teólogo. Além de ter sido o orientador de Adorno, Tillich foi um dos que apoiou a formação do Instituto de Pesquisa Social, inclusive indicando Horkheimer para sua direção. Ou seja, o homem era bom mesmo.

Oh, vc é o leitor de Dostoievski mais aberto que já vi. Não fica buscando achar cristianismo nele. Antes, lê suas histórias e interpreta conforme a sua própria trama. Se um dia eu decidi aventurar-me na literatura russa — coisa que eu já deveria ter feito —, saberei com quem conversar.

Aquele abraço.

Alysson Amorim disse...

Mari,

Confesso que é um livro que eu gostaria de perder, mas tal é impossível. São muito doloridas aquelas páginas. Um homem se desfazendo em verdadeiros rituais masoquistas.

Beijão.

Felipe,

Tillich, de alguma forma, tem que figurar entre as minhas leituras julinas. Tudo que foi produzido pela Escola de Frankfurt me interessa.

Quando quiser começar aventurar-se na literatura russa saiba que este Memórias é um bom ponto de partida. Talvez seja o menos dostoievskiano de todos os escritos daquele romancista. Bem atípico, um tanto quanto existencialista, mas certamente um ótimo começo.

Abraços.

Felipe Fanuel disse...

Obrigado pela dica!