sábado, fevereiro 03, 2007

Recordações de uma infância perdida

Lanço o olhar para adiante. Sonho os sonhos faraônicos da juventude. Arco do triunfo. Muralha da China. O céu, o mar, o infinito invade meus ambiciosos sonhos e o espaço ainda é vasto.

Volto os olhos agora para o caminho que já trilhei. As coisas surgem encobertas por uma densa névoa. É que os olhos da memória são míopes. Tenho que admitir: não vejo muralhas nem soberbos triunfos. Vejo bagatelas emaranhadas em teias e aranhas. Belas bagatelas.

Uma caixinha cheia de carrinhos de flexão. O corredor que se transformava em um campo de futebol, onde desfilavam jogadores de botão. Uma bolinha com que criava grandiosos campeonatos de jogadores imaginários – o campo era um cômodo amplo de minha casa.

Bem no fundo de um cano velho por onde descia a água da chuva, residia uma grande amiga, parida nos tecidos da minha imaginação. Passava tardes confiando a ela meus segredos mais íntimos. Tinha um nome cujos meus ridículos pudores me impedem de publicar, mas não tinha exatamente um corpo, senão um certo aspecto amarelado, do qual me recordo com uma extraordinária perfeição. Sua doce presença era aquele amarelo fosco, nada mais. Bastava para minha felicidade.

Gostava de brincar com as palavras. Meu pai estimulava minhas redações, que quase sempre versavam sobre uma paixão que naquela época me arrancava lágrimas: o Cruzeiro*. Minha mãe estimulava uma brincadeira poética de associação. Ela dizia um nome próprio e eu respondia com um objeto que lembrasse aquele nome. Estava longe de ser uma associação lógica. Se minha mãe dizia seu próprio nome, “Ana”, eu respondia com um “gato”. Esta associação era a única que eu conseguia explicar: é que um pote em forma de gato, um curioso objeto que tínhamos aqui em casa, tinha os mesmos olhos verdes da minha mãe. Se ela dizia “Aline” não tardava em responder “brinco”. Se dizia “Arlete”, enchia a boca pra proferir “hélice”. Nestes casos, nunca consegui explicar as associações. E nem precisava explicar nada. A felicidade tinha seus pés macios pousados em meu ombro e se alimentava na concha das minhas mãos.

A mesma felicidade que hoje insiste em alçar vôos estratosféricos sempre quando consigo a façanha de prendê-la na gaiola das minhas ambições.

* Para os não iniciados no tema, o Cruzeiro é o maior time de futebol das Gerais e do Universo.

* * * *

9 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Camarada,

Quanta criatividade tem o mineiro no seu modo de vida! O fato de não termos nada além do que montanhas e um imenso céu azul não nos inferior a nenhum outro lugar do mundo. Pelo contrário, exercitamos outras maneiras de desenvolver nossa imaginação.

Identifiquei-me bastante com sua história, pois vivi num ambiente semelhante. Seu texto fez meus pensamentos regredirem a um tempo que parecia perdido, mas descobri que não está, pois foi, é e será sempre a base de minha vida.

Enquanto o lia, lembrei também do poema de Carlos Drummond de Andrade que, permita-me, citarei abaixo:


INFÂNCIA
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala — e nunca se esqueceu
chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
— Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

* * *

Acho que é isso, meu amigo. Sua história, como a de Drummond, como a de qualquer mineiro é mais bonita que a de Robinson Crusoé. Aliás, Minas guarda muitas histórias — "causos" — que compõem a memória de um estado que plantado em cima de ideais libertários — vide inconfidentes —, vai construindo e perpetuando um povo persistente em mudar o mundo ao modo mineiro de ser, tão disposto a "alçar vôos estratosféricos" quanto a se prender em uma gaiola de ambições. Em outras palavras, uma liberdade consciente de seus próprios limites, sua própria demora: "liberdade ainda que tardia".

Forte abraço.

Alysson Amorim disse...

Amigo Felipe,

Seu comentário, como o Cruzeiro da minha infância, quase me arranca lágrimas. Fico feliz em saber que esta não é a minha história, a história do meu umbigo. Não. É a história do nosso povo, do nosso poeta, dos nossos inconfidentes, a sua história também.

Uma história sem o mar, produzida entre nossas montanhas. E estava certo o Drummond: mais bonita que a do Crusoé.

Comendo pelas beiradas, vamos tecendo obstinados a liberdade... Libertas quae sera tamen.

Abraços!

Mariangela disse...

"os olhos da memória são míopes." brilhante querido! xD

Sem palavras, só orgulho do meu sobrinho heuahsueahs..

Bjo!

Tamara Queiroz disse...

Alysson,

Que lindo o seu texto!

Por enquanto, eu só consigo ver a beleza dele, estou doentinha e "raciocinar" palavras fica difícil, só sei sentir.

Volto depois.

B-joletas.

Alysson Amorim disse...

Mari e Tamara.

Agradeço as palavras carinhosas!

E melhoras, Tamara!

Bjs.

Tamara Queiroz disse...

Quisera eu perder as recordações da minha infância...

Cruel é lembrar que eu não queria, naquele época, nunca deixar de ser criança.

O pega-pega, o esconde-esconde, o pique bandeira, as barbies, os jogos da memória, as construções de casinhas, os games, os estudos, os danoninhos, as bolachas passa-tempo... todo o gosto que eu sentia com prazer eu colocaria num baú para, no futuro, eu sentir o frescor.

Mas, ó, prenda a felicidade numa gaiola infinitamente vasta...

Alysson Amorim disse...

Belíssimas palavras, Tamara.

Mas penso que todos nós guardamos um baú destes no cantinho da nossa alma. É um baú forte que protege nossos brinquedos e brincadeiras contra o efeito corrosivo do tempo. Se chama memória.

Quanto sua maravilhosa sugestão, a "gaiola infinitamente vasta"... É uma metáfora perfeita do Paraíso. A desejo ardentemente...

Beijos. Sua visita é sempre agradável.

Janete Cardoso disse...

" A felicidade tinha seus pés macios pousados em meus ombros e se alimentava na concha de minhas mãos"
A maioria dos pais, se sacrificam tanto, para que seus filhos tenham uma vida feliz, sem se dar conta de que basta tão pouco! Amor e atenção, são o melhor caminho, para tornar nossos filhos, pessoas realizadas!

Alysson Amorim disse...

Janete.

Grande verdade. A brisa da tarde traz consigo a felicidade, mas não sentimos porque estamos preocupados demais com nossas obras faraônicas.

Bom receber sua visita.

Bjs.