sexta-feira, junho 15, 2007

Arte e Igreja

Tenho observado que se trata de uma regra que comporta raríssimas exceções: manifestações artísticas produzidas nos meios eclesiásticos tendem a descambar para uma arte engajada de valor estético questionável. É possível que a explicação esteja no desprezo pela arte, motivado, em grande parte, por aquele dualismo que coloca sagrado e profano em compartimentos distintos e vem sendo acolhido como verdade intocável pela tradição cristã.

Na esteira deste dualismo, o cristão teria uma vida cindida: de um lado, a esfera religiosa, de outro, a esfera secular. Na esfera religiosa é o ser que faz suas orações, suas leituras do (único) Livro Sagrado e que participa da comunidade cristã. Na esfera secular é o ser envolvido com os afazeres do cotidiano: o estudo, o trabalho.

Algumas interseções se estabelecem entre estas esferas e são quase sempre tentativas de ressignificar as tarefas imanentes, próprias da esfera secular e tidas como impuras. Preenchê-las com um conteúdo religioso qualquer, eis o objetivo. Se desvencilhar o máximo possível do profano, seja santificando-o com alguma coisa como a pureza de intenção (a idéia calvinista, por exemplo, de que o trabalho dignifica o homem), seja renunciando a ele, quando se revelar inútil.

Aqui se situa a arte: tão "profana" quanto inútil, portanto, a partir daquele dualismo religioso, descartável. Melhor ainda: manipulável, passível de sofrer um desvio de finalidade (1), sempre a serviço do Reino (leia-se: da esfera religiosa).

Daí as peças de teatro que se convertem em intragáveis espetáculos de proselitismo. A música que é retorcida até se tornar um reduto de chavões, repetidos a exaustão. A dança, aquela arte que desafia o poder da gravidade, escrava dos movimentos mais grosseiros.

Deus fica esquecido, fechado entre as folhas dos profanos livros de poesia.

* * * *
(1) Este desvio de finalidade é característica da arte kitsch.

4 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Cara,

Quase chorei, ouvindo essa música "Gravity" e lendo esta postagem.

Volto com mais tempo para comentar.

Obrigado por este momento de experiência estética, onde se pode fugir um pouco deste mundinho hiper hermético... Só aqui na blogsfera mesmo, ao que se parece.

Abraço apertado.

Natália Nunes disse...

Nuh!
Q crítica mordaz, heim?!
Gostei bastante.
Penso q vc deve pagar o preço de se sentir deslocado da cristandade por se permitir questionar essas coisas.
Eu me sentia.

Espero q vc encontre equilíbrio, mesmo q ele parece exorbitante para quem olha de fora.

Bjo!

Felipe Fanuel disse...

Alysson,

Vc já percebeu que o sentimento de busca por sentido último da existência não está dentro das instituições que se pretendem detentoras do sagrado. A arte mora neste mundo de incondicionalidade, onde não há separação entre profano e sagrado. A literatura, como uma arte, é praticamente uma religião. Ela constrói um outro mundo, onde há espaço para um transcendente-imanente. Afinal, só a literatura é eterna!

Não podemos confundir literatura com poesia. Esta vem antes daquela. O poema é ainda mais animalesco que a linguagem literária, pois está submetido ao ritmo, sendo, pois, o próprio ser vivo. O poema nos faz cantar.

Vc está certo em dizer que "Deus" está nas páginas dos livros poéticos, desde que este "Deus" seja "Deus acima de Deus", ou seja, Deus além daquilo que conhecemos de Deus.

Tá feito o comentário!

Janete Cardoso disse...
Este comentário foi removido pelo autor.