sexta-feira, maio 18, 2007

História da África

Em que pese toda força de uma história focada nos vencedores – nos proprietários das batatas, para lembrar Machado – e, por outro lado, toda indiferença de uma historiografia marxista, porém umbilicalmente vinculada a Ibéria, é curioso observar que as raízes africanas, embora ignoradas por conservadores e progressistas, permanecem entranhadas com assombrosa vitalidade ao nosso solo.

Decifrar nossa história e lograr triunfo naquela secular jornada por uma identidade nacional exige uma atenção maior a uma das principais matrizes que formam o que chamamos de Brasil. Não avançar no estudo da história da África, ou limitar seu estudo a uma análise do fenômeno jurídico da escravidão é atacar, na raiz, qualquer possibilidade de compreensão da nossa própria história.

A Lei 10.639/03 instituiu a obrigatoriedade do ensino de cultura afro-brasileira e História da África nos nossos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares.

É um inegável avanço, conquanto não seja medida suficiente para integrar em definitivo o ensino de tais matérias aos currículos escolares. No Estado Democrático de Direito não só o processo legislativo como também a atuação da Administração Pública - vinculada que está pelo princípio da legalidade, isto é, pela (aplicação da) lei - devem receber intervenção ativa da sociedade civil.

A Lei em tela é uma conquista do movimento negro, obtida no espaço democrático (ainda estreito, é verdade) que invadiu nossas instituições pós-1988. Um desafio vencido que conduz a outro, ainda maior: alcançar aquilo que em Direito chamamos eficácia plena da lei, ou seja, o grau máximo quanto a sua produção de efeitos.

Neste sentido, pelo menos duas medidas são, por hora, urgentes: é hora do movimento negro se organizar para cobrar da Administração Pública a aplicação daquele dispostivo legal, sem negligenciar a produção de meios que venham a permitir a inclusão efetiva daquelas matérias, com a devida qualidade, no Parâmetro Curricular Nacional.

Participo de um Grupo de Estudos organizado pela Secretaria Municipal de Educação, regional Barreiro, em Belo Horizonte. Um dos objetivos do Grupo é atuar junto as Escolas Municipais da região, justamente apoiando e incentivando a inserção daquelas novas disciplinas nos currículos escolares.

Vários outros grupos, espalhados pelo Brasil, estão empenhados nesta importante tarefa. Um esforço que, sem dúvidas, não restará inútil.

* * * *

6 comentários:

Felipe Fanuel disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Felipe Fanuel disse...

Meus aplausos, Amigo!

Quero confessar que, como filho do senso comum, não gosto de leis. Ontem mesmo deixei de comprar um livro de Derrida só porque era sobre Direito. "Eca!" é a minha melhor expressão para isso. Sei, todavia, que sou fruto de uma cultura que não cumpre suas leis, feitas para ficarem no papel.

Gostei do que li aqui, como sempre. Seus textos têm despertado em mim o interesse por estes meandros jurídicos brasileiros. Tenho lembrado que, vez ou outra, me pego falando, indignado, em estabelecimentos comerciais a seguinte frase "isso é inconstitucional!". Acho que essa frase, na teoria, seria uma vontade de saber as leis para provar que as pessoas não as estão cumprindo. Na prática, não passa de uma ameaça a um suposto processo que, confesso, nunca teria coragem e ânimo para mover. Se você já fosse um advogado, talvez te passaria uma lista de pessoas e instituições as quais eu gostaria de processar. Só faria isso, porque vc é meu amigo. Fosse outro não faria.

A mãe África é o osso na garganta do planeta. Reduto das injustiças e dos maiores pecados cometidos pela cristandade, lá está o nosso arquétipo de liberdade tribal. A África livre, entretanto, há muito foi transformada em África escrava. Lamentável.

Os estudos de cultura africana deveriam estar em todas as universidades e escolas do mundo. O universo de cosmovisões africanas tem muito a contribuir para o conhecimento humano. A visão européia de mundo é muito segregadora.

Por exemplo, eu não consigo aceitar que meus ancestrais do continente negro, escravizados pelos brancos cristãos, não foram salvos só porque não conheciam uma religião européia imperialista. Isso seria racismo dos piores.

Seu esforço, certamente, não será inútil. Continue a lutar por isso!

Abraços militantes.

Janete Cardoso disse...

Que causa linda Alysson!
Acho que não apenas o movimento negro, deveria cobrar da administração pública, a aplicação da lei, mas todo cidadão brasileiro, afinal nosso país é mulato. Nada mais justo do que incluir aos currículos escolares, a História da África, nossa raíz.bjs

Alysson Amorim disse...

Felipão,

Valeu pela força. =)

"Eca" é, sem dúvidas, expressão das mais amenas para muita coisa relacionada ao direito. Eu geralmente uso expressões mais grosseiras. rsrs

O seu desejo de mover ações, para Habermas, seria interpretado como algo saudável a democracia. O agir comunicativo encontraria espaço nos processos judiciais. Aí você imagina com que empolgação os advogados se valem da teoria do agir comunicativo de Habermas. rsrs

Realmente. A África é um baita de um osso na garganta do planeta, na garganta, eu diria, da civilização ocidental.

Um osso que precisa, no nosso caso brasileiro, ser até mesmo indicado. Está ali e exige uma atitude. Chega de sustentar o mito do Gilberto Freyre, aquela coisa da democracia racial. Democracia p* nenhuma. Esse racismo velado, hipócrita (bem ao modo brasileiro) precisa ser desconstruido. Isso passa pelo estudo da história e cultura africana, pela reconstrução da identidade de pelo menos 90 milhões de brasileiros.

Abração.

Janete,

Sim. Um país mulato. O mais mulato dos países. Integrar África nos nossos currículos é mais do que justo. É uma obrigação moral.

Bjs.

Felipe Fanuel disse...

Cara,
Infelizmente, a nossa herança africana só tem sido sinônimo de bunda grande, dança, carnaval, capoeira, jeitinho, molecagem, et cetera. É uma África sacaneada, que só vale para fazer macaquice na frente dos gringos, como se o continente do Mandela fosse apenas um lugar de onde saem pessoas que só querem se entreter na vida, pois não tem nada o que fazer, ou não prestam para muita coisa.

Oh, ouvi uma história contada por um professor peruano, de que lá na Guatemala o povo adora um tal de São Judas Iscariotes. Os guatemalos não se esquecem da cristandade dominadora espanhola que chegou ao continente com a bandeira da cruz ao lado da espada. Eles inteligentemente pensaram: "quem entregou esse tal de Jesus que só pode ter sido alguém muito mau a ponto de inspirar homens tão cruéis?" hahaha O resultado foi cômico. Eles simplesmente passaram a adorar a figura apostólica da traição no mundo cristão. Bem faria a África se fizesse o mesmo. Afinal, as "testemunhas" daquele moço de Nazaré vivem esquecendo de que mártires — testemunhas em grego — são aqueles que morrem por uma causa, não os que matam por uma.

Abraço.

Alysson Amorim disse...

Disse uma verdade, camarada. É justamente assim. A África escassa nos círculos acadêmicos, a África não problematizada, em algum lugar há de transbordar, e isso acaba acontecendo na Sapucaí.

E acontece de uma maneira grosseira, estigmatizada e homogênea, como se a África se resumisse a uma cidade, ou a um país, mas nunca ao continente enorme, esplendorosamente heterogêneo que é.

Realmente cômica a história do professor peruano, mas não menos trágica. Até quando vamos fazer da cruz que liberta uma espada que oprime?

É só o que pode se exigir daqueles que foram vítimas da sangrenta história da cristandade. Que adorem o beijo de Judas. Um beijo libertador.

Abração.