segunda-feira, abril 02, 2007

Ressurreição

Cada gota do néctar de Dionísio era sorvida entre gargalhadas e piadas obscenas. Uma garrafa apenas e nada de taças: do gargalo direto para as bocas cheias de dentes e palavrões. Ramiro não se contentava com o gole único: chegava a sua vez e dava logo dois, três, quatro goles. Levava depois um chute teatral no estômago. Riam. O riso ébrio, os dentes manchados pela uva líquida.

Passaram assim a madrugada. Uma garrafa, estilhaços. Depois outra. Ramiro sempre exagerando. Rindo e cuspindo toda a sua tristeza, cantava melodias que saiam em versos zonzos de embriaguez; versos que saltavam da ponte no rio, bramando o nome da amada.

Depois de centenas de goles, vomitou. A roupa emporcalhada, os dentes sujos de vinho e suco gástrico. No ar as gargalhadas ressoavam agudas; o coro de amigos se contorcendo de satisfação e Ramiro ameaçando vingar-se com abraços suínos; grunhia como um porco e gritava palavrões, andando de quatro.

Lançou um desafio. Alguém ali teria coragem de envolvê-lo num abraço? de compartilhar de sua miséria fétida? O desafio e o silêncio. Depois o abraço coletivo, entre o vômito e o vinho.

***


“...em memória de Cristo”, e a congregação sorvia em um único gole o sangue do Messias. Dúnia fechava os olhos e se esforçava para sentir o gosto amargo do cálice; o cálice laxante e sulfúrico, aquele que dissolveria suas algemas.

Permaneceu sentada na execução do hino à capella, silenciosa, assustada com os ruídos medonhos que vinham de sua alma; metais que tilintavam, o som abafado da pedra no solo. Respirava, procurando um ar, que parecia não ser suficiente...

Um ar que ia se tornando ainda mais raro na medida em que o pastor desenvolvia seu sermão. Dúnia sufocada no banco de madeira, as narinas dilatadas, sedentas. Narinas sem pulmão, pulmão sem narinas: o corpo de Cristo esquartejado.

Lembrava do corpo de Cristo sustentando a cruz; depois lembrava do corpo do Ramiro. Sentia culpa. Culpa que era inflada pelas palavras do pai, ainda flutuando em sua memória: “não podes comungar com as trevas”. Fixava então seu pensamento na paixão de Cristo.

O sangue sorvido pela cruz e pelo chão. O homem de braços abertos, como quem se entrega, como quem desiste da utopia; entregava-se a quem? a seus algozes? Mas o mendigo ainda estava na esquina, chapéu tilintando moedinhas; as pessoas ainda compravam esquifes com os olhos marejados...

E Dúnia cativa de suas contradições: amava tanto o Ramiro, o profano. O corpo do Ramiro. Mas o corpo do Messias se entregava; fazia a contradição crescer, criar bocas, dentes, engolir tudo.

A cruz e o chão se embriagando de sangue. Morte e depois silêncio. Mas por dentro os metais ainda se debatiam, ensurdecedores, sufocantes. Riam. O riso torturante dos metais.

Já noite, cabeça no travesseiro, Dúnia sonhou: um corpo se aproximava; seria o do Cristo? o do Ramiro? Certo é que acordou tonta de felicidade, braços livres, os metais se corroendo no chão do quarto.

* * * *

10 comentários:

Felipe Fanuel disse...

Ops! A liturgia tem de ser completa. Falta ainda a ressurreição. Preferiria comentar no Sábado de Aleluia, mas a força maior do feriado nos faz adiantar até a ressurreição de Cristo. (rsrsrs)

Eu, inevitavelmente, embarquei na onda dionisíaca do primeiro ato do texto. O realismo da sacralidade profana é tão profundo que, durante a leitura, várias vezes meu inconsciente duvidou se há mesmo esta divisão entre sagrado e profano.

De fato, na eucaristia, bem batista a propósito, a lembrança é construída ao modo de justaposição de imagens. Ficar perdido aqui é gostoso, é sinestésico. Diferente daquele mero e frio memorial praticado entre os mais iconoclastas dos protestantes — os batistas — que transforma a ceia em pão de forma e suco de uva, aqui a memória se chama cotidiano. Sim! Não é aquele memorial que precisamos ficar lembrando a Cristo que ele morreu por nós, como se ele fosse amnésico. Nós quem lembramos dele revelado em nossa própria memória.

O último parágrafo me fez lembrar de Victor Frankenstein que após criar seu monstro sonha que está beijando sua amada Elisabeth, mas ela se transforma em sua mãe, figura apolínea do seu inconsciente. Cristo e Ramiro poderiam ser Dionísio e Apolo respectivamente, pensei.

Devaneio apenas. Não me leve a sério. Quero tão somente sentir os efeitos deste texto, tão bem escrito e tão ousado na maneira de construir sua teologia. Alguém já disse que a tarefa teológica se encontra na razão fragmentada. Aqui a razão se fragmenta na própria teologia.

Este método nem um pouco heurístico quer nos levar para além do símbolo ao nos convidar para reinventar o próprio cotidiano, a própria vida, a própria fé. Afinal, a criatividade foi feita para ser usada.

Forte abraço, meu caro!

Felipe Fanuel disse...

Amigo,

Convido-o a visitar um blog recém-criado do qual faço parte.

Eu deixei minha contribuição textual hoje. O nome da postagem é "Via dolorosa". Se tiver tempo, dá uma passada lá.

Abração.

Felipe Fanuel disse...

Ah,
O nome do blog é Raízes do Mundo.
O endereço é http://raizesdomundo.blogspot.com

Alysson Amorim disse...

Grande Felipe,

Sim. A liturgia tem que ser completa; e adiantei o post por duas razões: primeiro por um desejo que pulsa em mim: o Domingo, a ressurreição. Não consigo ver essa via crucis sem a ressurreição. Sou como criança, vejo a sobremesa e quero saborear logo, antes da hora. Depois porque não vou estar aqui no Domingo: viajar um pouquinho não faz mal.

Essa coisa do sagrado e do profano. Vá lá. As fronteiras são fluidas demais. Num átimo e o sagrado vira profano, o profano sagrado. Até arrisco dizer que muitas vezes o "profano" é mais sagrado que o "sagrado".

"levar para além do símbolo ao nos convidar para reinventar o próprio cotidiano, a própria vida, a própria fé"

Essa é minha busca. Reinventar o cotidiano, a vida e a fé. Aliás, algo que você fez muito bem no "Via Dolorosa" publicado lá no Raízes do Mundo.

A graça de Deus.

Abs.

Felipe Fanuel disse...

Ô, meu amigo, vc tem toda razão. Não há muita divisão entre profano e sagrado. O papa da fenomenologia da religião, Mircea Eliade, nos revela, em seus estudos sobre a história das religiões, que inicialmente não havia divisão entre sagrado e profano. Era tudo uma coisa só. Por isso, hoje facilmente percebemos que os limites são bastante tênues entre estes dois lados. Acabamos caindo num mero dualismo.

Obrigado por aparecer lá no Raízes. Eu fui convidado por uma amiga blogueira portuguesa a entrar lá. De vez em quando tentarei deixar uma contribuiçãozinha. Já tá difícil manter um quanto mais dois blogs. (rsrsrs) De qualquer maneira, agradeço também pelo link.

Uma boa viagem e um bom descanso.

P.S.: Amanhã chego em BH, mas só de passagem. Preciso sentir o clima nostálgico belo-horizontino. (hahaha)

Felipe Fanuel disse...

Ah, já ia me esquecendo: Feliz Páscoa, com ou sem chocolate.

Janete Cardoso disse...

Olá,Alysson!
Ah,o Ramiro...apesar de sua vida desperdiçada, havia Dúnia, capaz de o amar...Foi por amor a estes, que Jesus se deixou sacrificar! Talvez os flashs na hora da Ceia, fossem sua consciência dizendo que Ramiro poderia também ter quebrado suas algemas, se ela tivesse feito algo. Cristo pagou o alto preço da libertação,mas nos incumbiu de proclamar esse fato. Todos nós, nos deparamos com pessoas como Ramiro todos os dias, mas viramos o rosto para não ver sua desgraça, nem sentir seu mal cheiro.
bjs

Janete Cardoso disse...

Embriagados em nossos pecados e fraquezas; cobertos pelo vexame provocado pelas nossas derrotas; imundos e fétidos, mergulhados em nosso próprio vômito... assim Jesus nos abraça, com amor incondicional, oferecendo gratuitamente, restauração e vida plena!
bjs

Alysson Amorim disse...

Janete,

O sacrifício de Cristo teve em conta todos: Ramiros e Dúnias.

Bjs.

Ana Leticia disse...

Que forte! Gostei deste texto, ainda estou tentando absorvê-lo, comovida...
bj