Como se sabe pela farta experiência, é dificílimo resistir às delícias prometidas pelos arquitetos da “ditadura econômica” em voga – aquela que prescinde de “militares mal-encarados” e é alimentada religiosamente por todos nós não sem um sorriso triunfante. Em literatura, porém, não é raro encontramos heróis dispostos a marchar com suas fibras homéricas na contramão do Potente Motor. Ocorre que nem sempre tais heróis são homens ou mulheres: algumas vezes são Canis Familiaris, que aqui justificam o honroso título de “melhor amigo do homem”.
A utopia de um mundo sem proprietários é recorrente em escritos anarquistas do Dezenove, caracterizados por elaborar acerbas críticas a idéia iluminista de propriedade como direito natural e absoluto. Pierre Joseph Proudhon, célebre autor anarquista, esbravejava contra a propriedade, acusando-a de ser “um roubo”.
A meu aviso, não faltam latidos anárquicos na literatura em língua portuguesa.
Em Vidas Secas, obra-prima de Graciliano Ramos, enquanto Fabiano e sua famíla vagueiam pela secura do Nordeste como marionetes de um necessário e trágico Destino, é curiosamente a humana cachorrinha Baleia quem se levanta e põe suas caninas cordas vocais a serviço da causa de Proudhon. Em um de seus estranhos fluxos de consciência ela deixa escapulir desejos anárquicos. Embora não diga assim tão abertamente, sente-se incomodada por ser uma coisa, um bicho com dono:
Era bom que a deixassem em paz. O dia todo espiava o movimento das pessoas, tentando adivinhar coisas incompreensíveis. Agora precisava dormir, livrar-se das pulgas e daquela vigilância a que a tinha habituado (...) Bichos miúdos e sem dono iriam visitá-la.
Na obra A caverna, assinada pelo brilhante português José Saramago, novamente nos deparamos com um cão extraordinariamente humano, o Achado, que também apresenta a visão de mundo canina com seus admiráveis traços anárquicos:
Apesar de estar aqui há poucos dias [Achado] não tem dúvidas de que a casa dos donos é a sua casa, mas o seu sentido de propriedade, por incipiente, ainda não o autoriza a dizer, olhando em redor, Tudo isto é meu. Aliás, um cão, seja qual for o tamanho, a raça e o carácter, jamais se atreveria a pronunciar palavras tão brutalmente possessivas, diria, quando muito, Tudo isto é nosso, e ainda assim, revertendo ao caso particular destes oleiros e dos seus bens Móveis e Imóveis, o cão Achado nem daqui a dez anos será capaz de ver-se a si mesmo como terceiro proprietário. O máximo a que talvez consiga chegar quando for cão velho é ao obscuro e vago sentimento de participar em algo arriscadamente complexo e, por assim dizer, de escorregadias significações, um todo feito de partes em que cada uma é, ao mesmo tempo, a parte que é e o todo de que faz parte. Ideias aventurosas como esta, que o cérebro humano, grosso modo, é mais ou menos capaz de conceber, mas que logo tem uma enorme dificuldade em trocar por miúdos, são o pão nosso de cada dia nas diferentes nações caninas.
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6 comentários:
Oi, Alysson!
Os bichos são sensíveis... Quando querem moldá-lo ao homem escrevem A Revolução dos Bichos... Putz... Os porcos são inteligentes, lindos, que pena que levem uma fama humana. Os gatos são lindos... Enfim, todos. Se soubéssemos viver em harmonia, viveríamos como os bichos. Só mataríamos para comer, como o leão. Mas somos antinaturais, sabe? Não nos basta o suficiente, não nos basta o que nos cabe. Por isso somos injustos, porque queremos além do que precisamos, e para isso destruímos... A música continua... manda pra mim por e-mail? É linda! Sou romântica, mas gostaria de não sê-lo! A gente só se dá mal...
Feliz ano que vem!
Maya
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Obrigada pela música!
: )
Duas tradições pagãs incorporadas ao Cristianismo, a despeito da incompatibilidade, e fortalecidas pelo iluminismo: tomar o sexo por profano e a propriedade por sagrada.
Precisamos ouvir os animais. Eles têm muito a nos dizer. Na literatura, eles dizem, porque lá é o único lugar onde eles podem ser animais mesmos. Acredite: aqui os cães não são cães, são utilidades, eles servem para alguma coisa. A literatura, como toda a arte, é o lugar possível onde as coisas podem ser coisas, não meios. As coisas não servem para nada na literatura. Simplesmente são coisas. São inúteis, não úteis. Os latidos só são ouvidos quando a literatura narra. Aqui não passam de som de cachorro. Portanto, se quisermos ouvir os animais, precisaremos ler romances, poesias, pinturas, músicas, e por aí vai. Muito aprenderemos.
Alyssom,
Coloquei ma música do Vander Lee lá no Blog.
Li um artigo do pastor Caio Fábio sobre animais e seres humanos e esclareço: não valorizo mais os animais do que os homens. Cada um tem seu lugar na criação, e o que menos sabe o seu, em todos os sentidos, é o bicho homem.
Infelizmente!
Feliz ano que vem!
Maya
Humm... Tenho um poodle "Adamastor", um preto dono de seu nariz, anáquiquico e feliz.
Afora os gatos, são seis. Aprendo com eles a dar e requerer...
Vim desejar que você tenha um FELIZ ANO NOVO!!!
De todo meu coração!
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